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quinta-feira, 5 de agosto de 2004

Ainda a ciência histórica
Carlos, nada me anima contra a história. Apenas sei que, enquanto ciência (tal com a entendemos hoje), ela é muito recente e o seu aspecto fundacional múltiplo assenta raízes numa racionalidade que vai de meados do século XVIII (Vico) a início de oitocentos (Hegel). A nova era moderna pós-iluminista recriou e recodificou tudo o que nos envolve incluindo, naturalmente, a nova ciência histórica (a ideia de que sempre existiu uma cientificidade histórica é coisa da escola primária do Estdo Novo).
De facto, no alvor da identidade moderna, a redescoberta e sistematização do passado, a começar pelas mais variadas teorias neo-joaquinitas que dividiram o tempo passado em idades, constituiu uma reiterada actividade do espírito. E porque cabia agora à modernidade reiniciar o tempo, havia antes que passar (urgentemente) a ordená-lo, por forma a definir tarefas, a traçar objectivos, a seleccionar corpus de análise e, por fim, a laurear esta actividade de pesquisa como sendo a própria ciência do tempo: a história. Em todos os cantos da Europa, desbrava-se, portanto, um incessante plano de cultos da memória, seja através de museus e arquivos; seja através da inquirição e escrita de ‘Histórias’ nacionais e universais (surge a visão romântica da História com H grande): de E. Gibbon (1737-1794) a A. Herculano (1810-1877) e, noutro plano, do Marquês de Condorcet (1743-1794) a J.Michelet (1798-1874), os grandes factos passados eram agora desocultados e colocados sob perspectivas adequadas, de modo a optimizarem uma produtiva reavalização do próprio presente. No final de doze anos de trabalho, o percursor E.Gibbon escrevia, em Lausanne, na derradeira página da sua imensa obra The History of The Decline and Fall of the Roman Empire (1776-1788):

“the attention will be excited by a History of the Decline and Fall of the Roman Empire; the greatest, perhaps, and most awful scene in the history of mankind. The various causes and progressive effets are connected with many of the events most interesting in human annals.”

Esta sede de verdade englobante, de grande narrativa e de recomeço, após uma definição axiológica dos próprios “anais” humanos, nem terá escapado à infância da fotografia. Foi por isso que o deputado Arago, ao apresentar ao parlamento francês um relatório onde dava conta da invenção de Daguerre (1839), referiu:

“ ... enquanto estas imagens vos são exibidas, qualquer um imaginará as extraordinárias vantagens que poderiam ter sido retiradas de um meio de reprodução tão exacto e tão rápido durante a expedição ao Egipto; qualquer um será abalado por esta reflexão, que se tivéssemos tido a fotografia em 1798, possuiríamos hoje imagens fiéis de alguns quadros emblemáticos, dos quais a cupidez dos árabes e o vandalismo de certos viajantes privaram para sempre o mundo do saber."

Eis como a imaginação poético-literária, a imaginação histórico-narrativa e a imaginação do assombramento fotográfico se aliaram para emprestar ao homem moderno, o mesmo que agora se sonhava igual a Deus (e do qual Nietzsche - e não só - tanto riu), a massa de que ele tanto precisava para moldar a sua nova e estriada identidade. Todas as ideologias modernas viriam a moldar a História a seu belo prazer para dissimular futuros radiosos e amiúde cercear liberdades. Outras vezes, a tal "nova ciência" foi e é um apetrecho essencial, embora, aqui e ali, com uma certa tendência para a arrogância em contexto multidisciplinar.