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sexta-feira, 2 de abril de 2004

La Vision du Lapin



Acabei de ver há pouco a peça La Vision du Lapin dançada pela companhia franco-suíça, 7273 (ontem em Évora, hoje no CCB). Particularmente interessante é o facto de as várias danças serem performadas em duplicado para que o público se possa “aperceber da duração”. A voz de cada bailarino anuncia o propósito e as legendas enquadram na tela o tom anunciado. Tal acontece três vezes a solo e duas vezes em dueto. É evidente que a sequência repetida gera inevitavelmente paródia, contraste e assimetria. Um fervor que parece nascer do gelo.
Não menos interessante é o registo de metatexto. Entre as peças fala-se acerca do que se passa em cena através de imagens móveis previamente gravadas. A explicação é quase inocente e explícita, ou então é alegoricamente narrativa. Entre o que se diz e os panos de fundo imaginados e sugeridos pouco ou nada se referencia. Nem podia ser de outra forma. O humor quase invisível e silencioso há-de continuar a preencher esse vazio intencional e denso. É evidente que o desnível entre a cena e o seu metatexto gera paródia, estranheza e abertura.
Por fim, e será o terceiro nível de interesse, é curioso sublinhar a forma como La Vision du Lapin brinca com as sucessivas brincadeiras, todas elas muito culturalizadas, que se pressupõem existir em qualquer espectáculo entre público e não público. Acontece um pouco de tudo neste âmbito: entre pedir ao público que reaja até filmar em tempo real o que o público teria dito se tivesse reagido; entre a provocação fática do silêncio e da mudez até à denúncia dos fantasmas de que a provocação é feita; entre a simulação do impasse e da denegação do ritmo até ao sorriso com que se partilha e esvai o medo inicial dessa pretensa simulação. De tudo isto a ironia da companhia franco-suíça é feita.
Vale a pena ir hoje ao CCB para espreitar estes coelhos, bailarinos estóicos e brincalhões. Desconstrutores a sério e sem jargão. Corpos extraordinários, estes 7273 desenhados pelos coreógrafos Laurence Yadi e Nicolas Cantillon.