O Ressentimento - 2
Muppets
Não li de ponta a ponta o último romance de Saramago, nem nada me entusiasma a fazê-lo (o que já acontece há muito, muito tempo). Mas se há exemplo de ressentimento - ver post mais abaixo - é aqui que o encontramos e, às vezes, de modo primário. Ou seja, proclamando em voz alta o que a maior parte dos ressentidos não está em condições de vociferar por si só.
Já vimos que o exercício do ressentimento, na maior parte dos casos, é levado a cabo de modo invisível, involuntário e sem que o próprio dê por isso. Até porque o ressentido reage contra a democracia e o outro (denegando-o), na medida em que não aceita ver defraudado aquilo para que foi programado, ou sonhou, ou definiu científica, afectuosa e unilateralmente há muito tempo. Para o ressentido, não há mudança de caminhos, nem há mudança de realidade. Isso seria traição, tal é a monossemia e o esquematismo de fundo em que assenta a sua vida fantasmática.
Ao fim e ao cabo, a luta do ressentido é entre si e as suas feridas, projectando essa dor irradiante e autista na sociabilidade plural que o envolve e onde se vê irreparavelmente obrigado a viver. É também por essa razão que o ressentido não é capaz de escutar um único eco ou conforto para a sua voz amarga. Sobretudo porque o lamento ferido dessa voz se resguarda na sua própria pele acossada, longe da abertura e das possibilidades múltiplas criadas pelos espaços públicos actuais.
O ressentido detesta o debate franco e procura nos mecanismos complexos e variados da democracia todas as chaves do (seu) inêxito e da (sua) injustiça. O ressentido passou até a traçar equivalências delirantes entre a compreensão que sente pelo terrorismo contemporâneo e os males cirúrgicos da democracia que detecta com escalpelo de clara má-fé. É nesta linha que Saramago, em Ensaio sobre a Lucidez, decide dar corpo a uma “revolução” (termo perpétuo de adulação nostálgica) materializada pela insistência do “voto em branco” de uma vastíssima maioria em duas eleições seguidas. Toda a democracia e os seus agentes institucionais entrariam subitamente em pânico. Sem mais adornos, o autor de A Jangada de Pedra deleita-se com dedinhos de pianista a pôr a nu e a desproteger radicalmente esta longa aprendizagem secular do ocidente que é a democracia (valeria a pena a Saramago ler o capítulo IV, A Aposta Democrática, do excelente livro Impasses - seguido de coisas vistas, coisas ouvidas de F. Gil, P. Tunhas e D. Cohn). Foi sob este estafado pano de fundo que o nobel apareceu anteontem à noite na RTP-1, com aquele habitual rosto martirizado, a dizer que “isto”, ou esta “coisa em que vivemos”, não é uma democracia. Que o voto é uma ilusão e uma pura mentira (ficamos a ouvir alto o que muitos pensam).
E dizia-o sem entender que a flexibilidade e a complexidade das posições em presença numa sociedade democrática constituem a mola real da expressão do contraditório e da prática insofismável da liberdade. E dizia-o sem entender que as várias esferas da vida (económica, social, jurídica, lúdica, imaginária, epistemológica, etc.) não estão divididas em gavetas estanques e que se movem no sentido indefinido das escolhas compostas e livres. E dizia-o sem entender que o poder político e o estado são partes ou linhas limítrofes com responsabilidades definidas e não moldes totalizantes e formativos das sociedades abertas. E dizia-o sem entender que os modelos impositivos e fechados das sociedades em que tanto acredita/ou não podem, nem poderão jamais vir a projectar-se sobre que miragem subliminar for.
Saramago troca ficcionalmente a ilusão do voto “contra o sistema” (que imagina sempre de modo estático e economicista) pela realidade daquilo que é a democracia, porque não quer saber que a democracia é, em primeiro lugar, um processo de permanente renovação e reinvenção da representação que tende a dar forma a vontades dissonantes e que tende a cruzar opiniões e modos de ser visando sempre a coabitação do diverso numa mesma arena pública (aconselho Saramago, a este propósito, a ler a reflexão sobre o inacabado em projecto, enquanto enunciação da própria democracia, tal como J. Derrida reflectiu em O Outro Cabo).
Para ser sincero, aos ressentidos, apenas desejo que comam muitos chocolates.