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domingo, 21 de março de 2004

Leituras de Primavera

Estou a ler Patrícia Melo (Inferno) e estou espantado. Grande livro, poderosa escrita, registo sincopado, hip-hop rítmico, sintaxe rap, a história engalanando-se de cor e abismo, rugidos ao fundo dos becos, vida de favela, crack, funk, fuga, assalto, choque e, apesar de tudo, tanta ternura e tanta fidelidade ao olhar que se redime diante do sofrimento mais corrosivo. Deixei a meio o último Lobo Antunes e, passe a minha sincera admiração pelo caudal múltiplo que fala nos livros do nosso melhor escritor, a verdade é que o encanto de Inferno de Patrícia Melo nos deixa a milhas do excesso da escrita entrecortada de Boa tarde às coisas aqui em baixo. Em fila de espera - depois de severamente instigados por leituras diagonais - está agora o cosmopolitismo poético de Amos Oz (O mesmo mar) e os segredos impiedosos de Philip Roth (A Mancha humana). Nem sempre a literatura tem tempo para se intrometer abundantemente entre os ensaios que tenho que ler (ou que releio em função dos meus compromissos regulares); nem sempre a literatura tem oportunidade de invadir o meu pathos e a minha rede de empatias, na medida em que, ao escrever - nos períodos em que escrevo, evito ler com devoração e lealdade a esse precipício que é o gosto. O que quer dizer que, neste preciso momento, a avidez está a ser compensada. Obrigado Patrícia Melo!