A invisibilidade dos nossos exílios
Vermittlung von Kunstwerken, Lynn Chatwick
Francisco: comecei por escrever no meu post de ontem que não criticava o facto de o Aviz ter publicado um texto que os dois concordamos ser deplorável. Entendo perfeitamente o que significa guardar para si a dor do silêncio. A minha reserva prende-se sobretudo com a fluidez e a facilidade extremas com que, hoje em dia, o tipo de retórica utilizado pelo tal senhor R.M.P.P. (nome, aliás, cripticamente interessante) se está a expandir entre nós. É uma voragem para a qual não existem quaisquer barreiras sólidas: nem valores consolidados, nem lógicas mínimas de dever, nem um arreigado espírito de exigência e rigor, nada. Estamos a viver no caos do facilitismo e as apreciações mais condenáveis pululam por aí como se fossem enunciados plausíveis.
Lembro-me de quando se publicavam os discursos de Américo Tomás na cantina da antiga Faculdade de Ciências na Rua da Escola Politécnica. Vivíamos num ambiente de gorilas e as escolhas do mundo não nos proporcionavam, na altura, grandes retóricas. O mundo afinal acabava e iniciava-se ali mesmo à nossa frente. Hoje nem sempre é assim. Às facetas positivas da actualidade (multiplicidade, mundialização tecnológica e democraticidade do espaço público) acrescentam-se algumas facetas bastante problemáticas (certos fluxos massificados, a propagação de medianias liofilizadas, acriticismo galopante, etc.). Entre ambas as esferas, o que se joga, no dia a dia, é a liberdade, a tolerância, a compreensão e a salvaguarda da autonomia interpretativa do mundo.
E apesar do mundo de hoje oferecer o que não nos oferecia há umas três décadas, a verdade é que Portugal continua a ser um país que faz por desconhecer partes essenciais de si próprio e que, além disso, persiste em ignorar certas realidades (distantes) mais ou menos incómodas. Esta síndroma de avestruz (o isolacionismo salazarento que hoje se veste de nacionalismo periférico e bacoco) torna-se evidente com a questão judaica, na medida em que o nosso país profundo ignora insistentemente essa sua face constitutiva - como afirmou Yosef Hayim Yerushalmi, “a história judaico-portuguesa ainda não penetrou na consciência pública” - ao mesmo tempo que sempre tratou o Holocausto como algo lateral, longínquo e que não é da nossa conta (no meu caso, foi preciso ter vivido uma década fora do país para me aperceber, na realidade - e não apenas pelos livros - da sua efectiva, corrosiva e trágica escala).
A ilusão da finisterra portuguesa onde aparentemente “nada acontece”, como dizia o poeta Ruy Belo (que ontem faria 71 anos), tanto apela à brandura mitológica e à tristeza pessoana como à fuga para a frente mais extravagante, ostentatória ou delirante. Mas, pelo meio, oculta-se muito do que perturba esta identidade pseudo-esfíngica (as suas variadas “nações”) acabando apenas por exibir-se a fachada fadista e misantropa, ou, no reverso, o engalanado corcel dos grandes circos, euros e expos quase sempre descentrado face à real textura do país.
Ou seja, no tempo de Américo Tomás, blogar os seus risíveis textos não era tanto questão de conhecimento do abjecto, mas antes um puro exercício de paródia hilariante. Mas, hoje em dia, blogar textos de anti-semitas declarados é dar voz ao abjecto - e libertar fantasmas, é certo (compreendo-o) -, mas sem que qualquer efeito paródico positivo se crie com tal facto. Em tempo de fluxos massificados, a paródia dilui-se e esvai-se na aceleração e no sucessivo mise en abyme das imagens, dando origem a discursos correntes estereotipados e apoiados na retórica primária de palavras de ordem (as imagens-tipo do tal texto deplorável vivem deste torvelinhar básico à Le Pen).
E é isso que mais me preocupa. Mais que tudo. Mais do que a própria publicação do pobre texto do senhor R.M.P.P. (que provavelmente nem imaginará que, em vida do Padre António Vieira, como o próprio testemunhou, os atributos “português” e “judeu” chegaram a ser sinónimos em variadas parte da Europa).
Todos os portugueses são, em parte, uma parte importante de um desterro ainda por desvendar.