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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2004

A escrever



O pior, o pior de tudo é voltar a escrever o que já estava escrito. Voltar a inscrever um novo ritmo sobre a natureza de vários outros ritmos já adormecidos, há muito, em torno das suas próprias memórias profundas. Ao contrário do que diz a maior parte dos escritores, trabalhar um texto não é um prazer, nem um vislumbre de ouro. É sobretudo amputar os rios mais antigos que nesse texto já se haviam desenhado. Porém, que importa isso quando o que conta é o resultado e o lustro final? Para que serviria, afinal, aos leitores ler as diversas etapas que terão dado origem a um dado texto (os muitos possíveis que nele estão escondidos), no momento em que o dito aparece impresso? O que encaminha, de facto, o Ocidente e os seus textos e a sua cultura é esta ideia de fim, de finalidade, ou de escháton. Sobre isso já escrevi muitas centenas de páginas (um doutoramento incluído em tal discorrer). Mas não me canso de o dizer: quando estou a ultimar um livro, neste caso um romance, o pior e, ao mesmo tempo, o necessário é este acto críptico de sucessiva depuração e de destemida finalidade. Mata-se e vive-se para dar ao texto a sua visibilidade desejada (e final). Nesta guerra nietzscheana, qualquer coisa arde e muita coisa sofre. Daí este lamento, daí esta íntima e descalabrada elegia. E é por causa disto tudo que eu não gosto nada da literatura apenas lustrada. Refiro-me a toda aquela literatura - light ou heavy - que se assemelha ao soalho flutuante acabado de inaugurar: bonita por fora, envernizada quanto baste, alinhadinha como os soldados de chumbo na parada e muito pensada para dar com a cor da parede, com os móveis e com as vénias do momento.