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segunda-feira, 8 de dezembro de 2003

Fotografiando - Dez Histórias de Cristais
Quarta


(Nos próximos dias, deixo-vos dez Histórias de fotografiar)



Era uma manhã quase cristalina e ainda se sentia a alvorada desenhada pelos raios em tons de carmesim ou anil a reflectirem-se como flores sanguíneas, espécie de amores-perfeitos ou arenárias avermelhadas, mas sem nome. Foi antes do grande astro despontar que a máquina pousou sobre o velho tripé e, de imediato, acabou por alvoraçar os pássaros. Em frente, uma nuvem a hibernar esse tom de vaga humidade que faz as sirenes, ao longe, silenciarem o spleen que é de tijolo ácido e fastio nas cidades da Holanda.

Atrás da imensa duna dos milagres, o dique era elevado e cobria o imenso aquário de olhos cuniformes, onde ainda adormeciam os sonhos dos peixes. Tudo se passava no coração da província de Haarlem e tinha rosto de mar tenebroso e ofuscado, como aquele que serviu para a primeira descoberta de Débussy: espaços agitados fluindo o mistério dos corais, o sussurro de algas mestras, o rumorejar de um sigilo quase indecifrável. Uns minutos depois, já o sol se levantava na grande esfera, vimos o corpo do fotógrafo a deitar-se sobre a máquina com a mesma precisão com que os pássaros se suspendiam na atmosfera sub-lunar. Como se fossem hastes muito delicadas que o tempo havia paralisado.

Foi nesse instante que os pássaros se voltaram a alvoraçar; talvez porque se ouviu de novo o mesmo estalido de há bocado; diziam que era um som compacto, derradeiro, um rumor do Éden. Foi nessa hora de murmúrios que o corpo do modelo acabou por saltar, como se quisesse chegar ao céu, tocar no súbito azul da esfera-mãe. E desse modo, nessa forma moldada por um tempo de barro, o modelo ficaria gravado em papel. Para sempre. Mais parecia um balão a levitar entre estrelas subterrâneas, a balancear entre mundos de claridade, a elevar-se por entre as mil luas da criação.