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sexta-feira, 17 de outubro de 2003

Escrita generosa e desilusões (resposta à Bomba)
A escrita não é um acto de (pura e cândida) generosidade. Longe disso (pelo menos no nosso tempo). A escrita projecta o ego, molda o querer, baptiza o desejo. É, ela mesma, a própria emulsão solitária com que inventamos mundos.
Só existe simulação de dádiva na escrita, na medida em que ela é falada no silêncio dos outros e na medida em que ela é falada através de um malha que subsume quem a enuncia. Ou seja, só poderia existir uma ilusão de generosidade naquele limite em que o texto literário parecesse domar totalmente a própria malha da escrita que lhe fosse dada a tecer. Isso terá acontecido com textos sagrados bem antes da invenção da estética iluminista, quando o que nós hoje codificamos por artístico era visto como um rodopiar da graça divina. Aí não havia tempo para spleen, ou para desilusão pura. Até porque o grande escritor do mundo emprestava a sua própria generosidade à escala do tempo dos mortais (que não era a sua). Desde o alvor da modernidade que o tema da desilusão face ao traço exclusivamente humano (Nietzsche rir-se-ia às gargalhadas da autonomia desse traçado) se tornou normal.
Daí que a desilusão não seja gerada pela (deslocada) generosidade da escrita. Sê-lo-á, sim, pelo nosso apego ou desapego às formas, aos ritmos, aos cortes e à capacidade de lapso que um a obra de arte - tal como ainda a entendemos hoje - nos possa ou não sugerir.