Páginas

quarta-feira, 3 de setembro de 2003

O ruído do mundo português

Outro dia, algures na Arrábida, um exercício militar deu fogo. E apagá-lo, num diferido televisivo, foi coisa de gesta épica própria de exército meio desempregado (constante europeia que só adquire visibilidade quando há conflitos internacionais). Hoje, nas instalações da NATO, um militar morreu devido a um disparo involuntário. Mais a norte, algures numa penitenciária, um esmerado "artista plástico" pintava um ramo de árvore a esvoaçar ao lado de uma pombinha branca. E a psicóloga com um dente a menos secundava o acto com grande gravidade. Aliás, o que é comum aos três casos, para além da farda, é o discurso dos peritos, ou dos experts, (os espertos, na lusa língua), que se apressam a narrar a moralidade dos factos com um ar absolutamente gravíssimo e adverbialmente decisivo e convincente.
De facto, ao lado do kitsch ostentátório, Portugal tem cada vez mais apetência a um culto dos peritos acacianos. No futebol sempre houve muitos, mas têm piada e funcionam bem na linguagem onde habitam. Só que agora o fenómeno está a transbordar... e o que era giro nos Donos da Bola, há uns anos (eu deliciava-me a ver), está agora a tornar-se cada vez mais na actualidade dos figurões da defesa, da segurança, da justiça, sem esquecer o verosímil (ou versossímil, tanto faz) de certos comentadores televisivos que começam a cansar. A repetição cansa, cria tautologias, origina reduções. E um longo discurso, semana após semana, começa, a pouco e pouco, a reduzir-se a siglas e a meras palavras de ordem. Do mesmo modo que o discurso dos responsáveis do exército (na Arrábida, ou no quartel da NATO) e da polícia (na tal Penitenciária pintalgada) é só já uma mera sigla, uma descansada palavra de ordem branca, inodora, inofensiva, sem sentido. Ruído. Um verdadeiro Nada.