Páginas

sábado, 6 de setembro de 2003

O 11 de Setembro revisitado - 2

Escrevia eu, em crónica, a 14 de Setembro de 2001:
(deixo aqui parte do texto para aclarar a memória de alguma correspondência entretanto recebida)

"Subitamente, todas as notícias, pequenas e grandes, se esvaíram. Toda a realidade, de repente, passou a fundir-se e a diluir-se naquela notícia das notícias que, com diversas vozes e tentáculos, tentava dar conta do acto impensável e dificilmente adjectivável que a nova barbárie havia praticado. Mas desta vez, a notícia das notícias não conseguia sequer traduzir a escala em que o novo evento noticiado se situava. Aquilo não era luta de libertação, não era obra de terror canónica, não era violência apenas gratuita, nem era arremesso anti-global da autoria de revoltados puristas. Aquilo era outra coisa: era uma outra arma, um novíssima arma - de que o povo civil, isto é, as pessoas eram parte compulsiva - e aquilo era, por outro lado, a ultrapassagem das cadeias de inteligência e informação internacionais.
No meio deste novo tipo de evento - e de notícia, ainda à procura de uma nova natureza para o traduzir - surgem agora alguns solidários que choram com lágrimas de crocodilo e, pior, surgem também aqueles que, por falta de reflexão ou por perda total de leme, vêm agora dar a entender que a coisa não foi assim tão má. Dizem eles que os americanos “aprenderam que não são invencíveis” e que “(os americanos) já fizeram muito pior a outros povos”. Essa gente que quer regar com imunidade a nova barbárie e que pratica um primitivo e primário anti-americanismo (semelhante a um pró-americanismo fundamentalista) não consegue entender o ciclo que o 11 de Setembro de 2001 abriu. Deixámos de habitar o quase pacífico corredor pós-muro de Berlim, dominado pelo colapso dos grandes códigos ideológicos rígidos e centrados, e, por outra parte, pelo novo advento de diversas realidades hipertecnológicas. Entramos agora na nova ruptura que irá opor inimigos globais, dispersos e acentrados, sob o pano de fundo de valores que dificilmente dialogarão entre si e com a escalada tecnológica a reatar o imaginário que, no fim da guerra fria, em plenos anos oitenta, ficou simbolizado pela ficcionalidade terminal do The day after."

O tempo, entretanto, veio dar razão a este pequeno texto: o novo ciclo passou a recolocar radicalmente as peças em jogo, embora continue a haver meio mundo que confunde essa realidade com o objecto de uma atitude protestatária que, ao fim e ao cabo, acaba por enfraquecer a própria defesa das democracias. E quando a opinião pública desarma face ao terrorismo, ou quando a opinião pública tem a tentação de encontrar nos erros intrínsecos e processuais das democracias o alvo principal da seu descontentamento, então, nessa altura, correremos todos perigo.
É esse, porventura, um dos maiores riscos que as nossas sociedades ocidentais estão neste momento a correr.