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sexta-feira, 19 de setembro de 2003

Novos ventos literários

Nas narrativas mitológicas e nas narrativas literárias modernas, digamos pós-iluministas, as grandes gestas e as deslumbrantes caminhadas humanas eram motivadas, quando não profundamente codificadas, por histórias modelares, ou por leitmotivs ligados a grandes e nobres causas colectivas. Nas flutuações do tempo contemporâneo, a ficcionalidade literária tem-se tornado muito mais aberta, policentrada e permeável até a um certo despojamento e, portanto, quase naturalmente que se tem apeado desses portos de abrigo de origem extra-literária e de raíz fundamentalmente ética.

Toshihizo Izutsu - que além de tradutor é também, curiosamente, um estudioso do Islão - referiu, no seu livro The Concept of Belief in Islamic Theology (1965), a existência de uma “relação ética” entre Deus e o Homem que seria, afinal, a base de todas as religiões do Livro. Do mesmo modo, poder-se-ia dizer que toda a literatura verdadeiramente heróica criada na era moderna das grandes ideologias (pós-1850 até, mais ao menos, à Segunda Grande Guerra Mundial) enveredou estruturalmente pelo modelar, pelo arquétipo, pelo grandes valores salvíficos do homem, de tal modo que o antigo Deus “ético” apareceria agora como que substituído e literariamente transposto pelo grande desígnio também “ético” que a humanidade teria, por si só, cientificamente inventado ou recriado.
Nas literaturas actuais que aparecem despidas da tradição que fez a literatura ser a literatura tal como hoje ainda de certa forma a recordamos e entendemos, os sentidos de legitimação totalizante da própria espécie humana, assentes em fundamentos que se reflectem em “grandes narrativas”, ou em relatos exemplares, terão cada vez mais tendência a esvair-se. Ficará talvez a grande história, ou o simples enredo paródico e intertextual, mas decerto sem aquela bengala essencialmente explicativa, anterior e matricial dos actos, dos gestos e das causas humanas. Ficará a grande história ou o elementar enredo irónico, a sós, porventura algo depurado, mas decerto à procura das vozes e da poética desse ser que fala e que se expande na e através da literatura.

No fundo, o que se augurará é um regresso do literário ao modo - ou ao método - essencialista e simples que - por exemplo - os pré-socráticos nos legaram, mas agora sabendo-lhe somar a experiência e o decantar dos nossos balanços repletos de nostalgia, mas também de toda a imensa energia construtiva acumulada pelas mais diversas culturas onde a literatura se veio a transformar, de forma vital, numa prática destacada e sobretudo numa rede plural e interimaginativa.
Uma literatura marcadamente actual, e não saudosa das inflexíveis arquitecturas escatológicas de toda a natureza, não se poderá assumir apenas - no seu vinco mais profundo e “saramaguês” (a interessante expressão é de Eugénio Lisboa) - como uma legitimação, ou como uma pura consagração do déjà vécu, filtrado pelo unanimismo correcto das mais variadas integrações e explicabilidades sociais - sejam elas mitológicas, ideológicas, políticas ou relativas a causas e valores tidos como singularizadamente “éticos”.

É possível que nos tenhamos já aproximado do tempo em que abertura e até a indefinição da codificação literária nos apareça como um enigma amigo e não tanto como uma imagem saturada, esquemática e poluída de outras codificações de origem não literária. Por outras palavras, é possível que uma nova ecologia literária venha a definir, a breve trecho, um novo modo de pensar, de ler e de escrever a literatura. E talvez assim ainda continue a existir literatura neste mundo que já não é mais dotado dos instrumentos, das leis e das sociabilidades que viram justamente nascer e datar a literatura, enquanto prática estética codificada por uma poiesis analógica moderna.

Uma nova literatura pode ainda vir a ser um facto entre verdades e factos, neste mar, ou neste nosso globário de identidades flutuantes, de mil navegações e de disputas sempre acentradas, digitais e rizomáticas. Digo-o, repito, com algum moderado optimismo, tendo também em conta a vaga muito em voga do hipertexto, do zapping textual, dos nossos blogues e do logomapping muito próprio do cibermundo, mas também das micromensagens fragmentárias de telemóvel.

Milenarmente, Deus e o homem fecharam-se no ciclo ético da teodiceia, conspirando punições e inventando a natureza (boa e má) dos actos praticados. Secularmente, as ideologias e o homem fecharam-se no ciclo ético dos julgamentos finais no planeta terra (e já não no além), através de mil paraísos e miragens quasi científicos. Desse mesmo modo, também a literatura se fechou, desde as suas muitas origens, num pacto quase irrevogável entre esses variados ciclos éticos, profundos e marcantes, e a respiração à superfície do que deveria ser e é o essencial: o labor ficcional e o exercício da retórica (passe a metáfora maniqueísta da alma e corpo literários).