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quarta-feira, 24 de setembro de 2003

Liturgias

Agora eis que chegou a altura solene de publicar uma posta que se propõe contribuir para a discussão que está em curso e que já mereceu um trabalho de casa interessante dos Cruzes Canhoto. Trata-se de entender que o período da chamada revelação cristã é ocorre num período em que a literatura apocalíptica judaica dominava imagética e retoricamente.
Ou seja, a revelação cristã surge, de facto, em termos históricos, no período marcado pela produção apocalíptica. Nos testemunhos cristãos mais antigos, como a Epístola de Paulo aos Tessalonicienses (ano 51 D.C.), é comum a presença de elementos tradicionais da apocalíptica judaica (por exemplo, a voz do arcanjo e a trompeta de Deus, anunciando a decisão divina - 4,15). Também o primeiro dos Evangelhos, o de Marco, escrito pouco depois do ano 70 D.C. (justamente após a destruição de Jerusalém), é organizado, segundo B. McGinn, "according a three-act apocalyptic drama". Passagens como Mc 13 e Mt 24 e 25 (onde a destruição do templo é relacionada com os signos do fim dos tempos) estão igualmente ligados ao imaginário apocalíptico. No entanto, é o Apocalipse de João que, retomando também temas e imagens dos apocalipses judaicos, introduz uma ruptura na matriz literária apocalíptica.
A escatologia surge aí como já inaugurada e a iminência dos fins ajusta-se a esse mesmo facto, já que os novos tempos são descritos como o próprio aqui-agora iniciado com a vinda e, sobretudo, com a morte do (anunciado) Messias. Embora a simbólica da redenção remeta para um avènement do novo reino, este só se viria a cumprir no mistério e constituir-se-ia, portanto, como objecto de revelação contínua. Daí o significado da liturgia cristã que, entre os protestantes, é sobretudo depurada e rendida a esta essencialidade e que, entre os católicos, associa uma mediação histórica e cultural a um conjunto de figuras e de indexicalidades físicas (muitas delas próximas da exaustão barroca).