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segunda-feira, 1 de setembro de 2003

Acabei de comprar o Equador do Miguel Sousa Tavares. Fi-lo para oferecer a quem gosta muito. Cá em casa. Compreendo o prazer deste tipo de gostos, mas não os partilho. Não tanto pelo marketing, não tanto pela competência linguística e estética do seu autor, não tanto por se tratar de um romance histórico (e eu não crer no mito da história como ciência, ou não apreciar particularmente o género), não tanto pelo enredo e não tanto, também, pelo facto de ameaçar tornar-se em best seller. O que eu menos gosto é da literatura que funciona por fluxo.
Nas Órbitas da Modernidade, defini fluxos como uma espécie de preenchimentos, mais automatizados do que autonomizados, no seio dos quais a liberdade é quase anulada por uma vontade prévia que é objectivada pelo instantanismo. Ou seja, por miúdos: vê-se em fluxo (a vida rodeada de ecãs), consome-se em fluxo (não interressa o que e por que se compra, mas compra-se; consome-se o próprio fluxo), fala-se em fluxo (regras rí­gidas ? Para quê ? basta só já uma sintaxe coordenada e alguns clichés em miniatura para contentar iniciais e siglas "q.b."), viaja-se em fluxo (a rotina motorizada das férias, do quotidiano urbano, das pontes, dos feriados, dos natais e doutros que tais), imagina-se em fluxo (a ficcionalidade dos média, construí­da a partir de dados reais, põe toda a sociedade a imaginar de modo homogéneo).
O fluxo é, pois, a voragem que precede a decisão e que atira o sujeito actual em fuga para a frente. Vê, compra, viaja, imagina e fala em estado de fluxo.
E há obras, ou livros, por muito bem escritos que sejam, por muito bem investigados que tenham sido através do labor de eminências anunciadas e por muito bem fermentados que tenham sido no mercado... que caem na arena do fluxo como ouro sobre azul. O livro de MST tem todas as características de um livro de fluxo. Parabéns ao autor pela receita ideal !
Junta o imaginário televisivo do autor a uma coloquialidade que apela à memória, à identidade e a um pretenso realismo histórico. Dá-se como objecto de um mundo de aventuras actual que recobre o mundo e roda sobre ele com eclectismo (daí­ o feliz tí­tulo). Por fim, propõe aos leitores um deslize ligeiro e confortável, ao longo da linguagem, que permite a muitos o jogo das mais de 500 páginas (se fosse música, digamos que ficava no ouvido).
Para mim, a literatura deve corresponder a um salto diferente. Não se trata de um salto para além da ordem dos fluxos - isso seria quase impossí­vel - , mas um salto diferente onde o factor estético ainda deverá ser o decisivo. É por isso que se chama literatura. Sem quaisquer preciosismos o afirmo.
Mas vou ler o Equador. Aos saltos, do fim para o princí­pio, em elipse, partilhando com muitos aquilo que são os fluxos.