O Verão traz até nós uma felicidade estranha. O ar torna-se leve, a aragem parece adormecida e, nos demorados fim de tarde, os tons do céu adensam-se na vermelhidão dos horizontes. Ao longe ou ao pé, na realidade ou na imaginação, os corpos recriam a sua nudez mais antiga, enquanto as palavras se deixam trocar pela perdição do olhar e, sobretudo, pela sedução da mais bela matriz das inércias: a preguiça. No Verão, as cortinas deambulam pelo imenso espaço de uma brisa ausente, os vestidos arrastam delicadas transparências e as estrelas, lentas, navegam pelos olhares deslumbrados, mas silenciosos. No Verão, há cigarras desmedidas, pátios encantados, cisternas em comunhão com as ervas mais sigilosas.
No campo da velha astrologia sígnica, também se torna curioso verificar a topografia do Verão. Por aí passam os noltágicos da pureza, ou seja, os nativos de Virgem; por aí passam os sagazes que estancam diante do fogo da vida, ou seja, os nativos de Leão; e, por fim, por aí passaram também, nos alvores da voragem do Estio, os nativos de Caranguejo que, há muito, hibernaram nas águas cálidas de Noé. O Verão é, pois, um território de passagem, de descanso, de irremediável pausa entre a invenção criadora do solstício natalíceo e o cansaço da terra, de que o Outono é inseparável referência.
Uma das férteis imaginações do século, face à própria natureza do Verão, foi e é o fenómeno da praia. Socializado nos anos trinta, massificado dos anos sessenta para cá, a prática da rotina balnear só nos últimos anos passou a contar com um alter-ego razoável, devido à emergência de novos dados relativos à perigosa poluição atmosférica. Mas nem esse facto recente contribuiu ainda para a diminuição das vagas de gente que, no início das quinzenas, leva milhões por essas estradas fora, como se fossem para o limiar de um paraíso. Saindo das urbes e da cadeia de hábitos diários, o indígena acelera destemidamente pelas estradas e, sem peias de qualquer ordem, disputa suicidariamente a sua morte e a do próximo, numa gingana difícil de imaginar nas imagens de "Actualidades" que a Pathé e a Gaumond transmitiam no início da segunda década deste século (e que, no formato dos anos sessenta, ainda eram populares em terra lusa).
Se o Verão é genuinamente uma dádiva de felicidade, enraizada ritualmente nos nossos mais pequenos gestos e sonhos, é extraordinário verificar como, no início deste século, no seio da nossa vida social, o encontramos tranvestido em manifestações tão rudemente violentas e próprias de uma rotina sem qualquer criatividade. De facto, às vezes, em certos itinerários, o Verão parece que se tornou num verdadeiro susto, num abismo incontrolado, num ritual dionisíaco e medonho.
Não perderemos, de qualquer modo, a vermelhidão dos ceús, a nudez dos corpos, os olhares deslumbrados, a liquidez das miragens, a delonga dos animais e, em primeiro lugar, a irremediável pausa que o Verão, na sua respiração mais profunda, nos doa. Não perdemos nada disso, é claro; mas triste seria esquecer estas essências do Verão em nome das massificadas cruzadas do século XX. Umas cruzadas em que a Jerusalém celeste se reduziu à suja e povoadíssima rebentação das ondas; umas cruzadas em que a salvação se tornou no bronze dos pateta-alegres e pobres de espírito; umas cruzadas em que as indulgências se passaram a chamar "décimo terceiro mês" acrescidas da devida taxa de ostentação (que todo o bom "portuguesinho", por exemplo, paga por alto preço e com o maior prazer). Uma beleza.
Saber sorrir por cima.