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sexta-feira, 8 de agosto de 2003

Estou concentrado na minha personagem. Todo o dia ao sabor desta descoberta. Janela aberta para um monte cheio de sobreiros e breves luzes amarelas. E há vozes que não deixam de se intrometer neste jogo de invenções: quem aniquila, conquista; quem devasta, quer decerto aparecer, impor-se, marcar o seu desígnio para sempre. Nero, por cima de todos, a ver a sua cidade em chamas. O maior dos incendiários. O efeito criado pela destruição torna-se, assim, no grande selo, na magna carta da aparição aniquiladora. Ei-lo, também, na lenda do Exterminador (I, II ou III) a povoar o universo de outros cruzados que atearam os cedros do Líbano, ou dos mongóis que se precipitaram para dentro da Bagdad Abássida. Nesta Dança com Lobos, soçobram os grandes destruidores, os grandes ateadorres da alma. Mas ninguém se lembra dos que transportam o mito consigo, no dia a dia, para o canto dos cafés, para os solitários bancos dos jardins, para os centros comerciais mais inodoros, e sempre, sempre ante o silêncio mais inexpugnável. Tão ensurdecedor é esse silêncio que nem o próprio personagem o ouve. Posto de escuta, rosto de escuta (ver texto mais abaixo, por baixo do sol, já na terra). Quem pega fogo à mata não escuta o apelo terrível, antes o devora e é assim tomado pelo gesto, pelo móbil, pela voragem. Antes dos fogos do presente, já este personagem existia. Desde Fevereiro deste ano. Mas agora entendo-o muito melhor. Confesso. Entendo agora melhor como é que ele terá sido capaz de fazer aquilo que todos desculpamos, quando chegamos ao fim de um dos textos dramáticos do Shakespeare. Dir-se-ia: Que mortandade, que veneno ! Hamlet, já no fim do seu périplo, a cambalear, afirma que o alento pode retardar o efeito da poção letal. Pode, é verdade, mas o alento não mais redimirá o que, depois, já não consegue viver-se. O meu personagem anda sonambulamente nesta terra de ninguém: entre o alento que é uma energia estranha que desgasta, excita e dispara para todos os lados e, por outro lado, um estado geral de presságio, de pressentimento ou de vulnerabilidade in extremis que o leva a pensar e a sentir no que ele caracteriza como sendo the big thing. A grande coisa. A obra. A pedra filosofal feita de um único lance, breve e terrível, mas reparador do grande lance onde se articula e enforma tudo o que é o mundo criado pelos homens. Ao longe, a mata. A fragrância do anoitecer. Tudo calmo. O sol já foi. Ei-o a pairar. Na memória tão incerta, quanto destroçada, do meu personagem. Ainda à procura. Sempre em desesperada demanda. Não de si. Mas do rosto que, do outro lado do vidro, não mais aparecerá em sua frente. Imagens.