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domingo, 10 de agosto de 2003

Agora, em Outubro, irá sair um livro meu destinado aos alunos de semiótica. Há muitos anos que sentia essa necessidade. Embora o livro se destine sobretudo a alunos que irão defrontar-se com uma cadeira anual introdutória de semiótica geral (em Comunicação, Artes, Arquitectura, etc. e muito menos em Letras, por exemplo), há, na segunda parte, uma atenção especial a alguns aspectos contemporâneos que podem ser entrevistos na sua relação com a longa e secular historiografia semiótica. Deixo aqui, para a possibildade de algum diálogo avant la lettre, a brevíssima introdução do ensaio, tendo em vista responder, desde o início, à mundana questão : o que é a semiótica ? Muitas vezes, o dito mundanismo é mais do que pertinente, até porque está muito divulgada a ideia excessivamente galicista de que a semiótica, de algum modo, se confunde com mecanos estruturais e quadrados sempre muito apelativos em certos espíritos dos chamados estudos literários. Sem ser um especialista, rejeito sempre esse adjectivão, até porque, nos meus ensaios, eu insisto sempre em ser um caminhante-questionador entre matérias, na senda da compreensão da actualidade, parece-me bem que a tradição semiótica merece mais do que o logocentrismo saussureano. Fica, portanto, o texto.

O que é a semiótica?

Enquanto actividade interpretativa do entendimento e da significação ligada ao signo e aos seus instrumentos, como escreveu, no seu tempo, João de S. Tomás, a semiótica é uma área do saber muito antiga e, por isso mesmo, conviveu, em épocas e circunstâncias diversas, com outros saberes, nomeadamente com a lógica, a filosofia, as gramáticas, a hermenêutica, a teologia ou a própria tradução (não terá sido a Escola de Toledo, durante o Califado Omáiada ibérico, sobretudo uma escola de intersemiose?).
A pesquisa da tradição semiótica tem sido realizada por duas vias dominantes, nomeadamente, através da prospecção do próprio conceito de signo (metodologia mais corrente em U. Eco) e através do modelo que visa uma teoria do entendimento e da significação, tal como diversamente se terá manifestado na casa desses outros saberes (metodologia proposta por J. Deely) . Numa e noutra das vias apercebemo-nos de que a autonomização do saber semiótico, enquanto tal, é uma tarefa que se desenvolve lentamente entre a Renascença e John Locke, projectando-se depois no Iluminismo e acabando por ser recebida, a partir de meados do século XIX, por autores fundadores que o postulam de modo já individualizado e bastante diferenciado (C. Peirce, E. Husserl, F. Saussure, L. Hjelmslev, R. Jakobson, etc.).
Contudo, a postulação contemporânea da semiótica já não é, à partida, baseada em percursos tão bem conhecidos e definidos. Por isso mesmo, foi nosso propósito, ao longo deste livro e em mais do que um capítulo, dar conta da tradição semiótica, mas apontar, ao mesmo tempo, as tendências fundamentais e actuais que atravessam a disciplina. Fizemo-lo, na medida do possível, com a presença de fontes primárias traduzidas para Português com o objectivo de suscitar aos leitores, num possível discurso directo (coisa que G. Deleuze diz não existir), a discussão íntima da teia semiótica.

Semiótica geral e semióticas particulares.

Felizmente não há dois manuais, nem dois autores que assumam uma definição fechada, idêntica e fixa de semiótica. Este é porventura o melhor sintoma que irradia da criatividade do próprio saber semiótico, o que, por si só, pressupõe a depuração quase natural das tentações esquemáticas de tipo estrutural. Se o semiótico é, pela via etimológica, o intérprete dos signos, a semiótica deverá ser considerada, neste momento de descolagem, como a área do saber que analisa os signos e que estuda o funcionamento de múltiplos sistemas de signos. Seja no plano geral, no quadro de uma semiótica filosófica, seja no plano particular, no quadro de semióticas aplicadas a áreas específicas.
A questão da semiótica geral e particular foi levantada diversas vezes e terá talvez a sua origem mais profunda no desígnio moderno das taxinomias científicas. Curiosamente, J. Locke, um dos primeiros a ser atraído por uma tal categorização, integrou a semiótica no seu esquema como um novo saber geral, entendido na acepção de uma mediação que se propunha descrever e elucidar os meios através dos quais o conhecimento, tanto especulativo como prático, era adquirido, elaborado e partilhado.
Sabe-se que a utopia lockiana não se perdeu totalmente. U. Eco, na parte final da sua obra, Sobre os Espelhos… , relevou o facto interpretativo como matriz do saber geral semiótico, considerando-o transversal, quer às ciências naturais por constituírem interpretações de dados (do “primeiro grau”), quer às ciências da cultura por constituírem interpretações de interpretações (do “segundo grau”), e, até mesmo, à malha informe do campo não propriamente científico (práticas perceptivas, artísticas, mitos, mânticas, etc.). O que significa que, na acepção de “actividade interpretativa do entendimento” (a expressão, insistamos, é de João de S. Tomás), a semiótica pode ser encarada como um saber geral e, portanto, meta-interpretativo, face a campos tão diversificados que incluem tanto o domínio científico como o não científico.
Para além deste carácter geral que permite isolar e estabelecer a própria esfera conceptual da semiótica, é também apanágio da disciplina uma focalização analítica dos mecanismos singulares de interpretação. Ou seja, se a semiótica geral discute filosoficamente o conceito de signo e outros que lhe são necessário correlato, já as semióticas particulares dão conta de sistemas de signos específicos bem como das latitudes de interpretação que lhe são próprias (sendo signo, como mero ponto de partida, tudo aquilo a que recorremos para compreendermos o mundo, o outro, e para nos fazermos compreender a nós próprios).

Pan-semiótica e limites comunicacionais.

Outra questão, quase sempre abordada como inicial, prende-se com os limites da semiótica. Ou seja: poderá a disciplina assumir o destino de um saber que visa a significação de tudo o que ocorre no globo e fora dele (pan-semiótica), ou apenas de um seu segmento limitado (por exemplo, apenas o nível das linguagens humanas de natureza verbal e decorrentes)?
A questão da pan-semiose atravessa eras e intencionalidades muito variadas. Liga a sensibilidade atomística dos Epicuristas à generosa trans-semiose de Santo Agostinho, desagua nos Iluministas franceses que se viram contra um certo excesso de razão (os sensualistas), como está também presente na natureza divina que B. Espinosa partilha com o homem; ressurge depois em C. Peirce e, mais tarde, aparece, ou é pressentida, em momentos tão diferentes quanto o são a Escola de Paris, através das semióticas do mundo natural, a complexidade dos agenciamentos de G. Deleuze e a própria teoria das catástrofes de R. Thom, ou a morfodinâmica e a morfogénese de J. Petitot e de P. Brandt.
Pelo contrário, a tradição logocêntrica, mais directamente ligada a uma atitude metafísica, sempre insistiu numa racionalidade onde se jogavam os limites de um certo tipo de significação em relação a outros. O dilema entre o presente e o ausente, entre real e não real, entre signo e não-signo assume toda a ênfase neste campo. As estratégias de exclusão que se opõem à pan-semiose têm grande interesse categorial e conceptual. É o caso de F. de Saussure, mas também e sobretudo o de L. Hjelmslev, como, noutra perspectiva, é o caso das análises a circuitos fechados (sinaléticas) e, por exemplo, da teoria da informação de N. Wiener (limitada à relação entre a comunidade humana e cérebros electrónicos).
Mais do que empreender juízos sobre estas tendências, ou sobre o carácter geral versus particular da semiótica, foi nosso método, ao longo deste livro, explicitar o debate, evidenciar argumentos e sobretudo expor raciocínios.

Semiótica e diálogo científico.

Nas últimas décadas do século XX, uma célere desestruturação tem invadido, no plural, os novos modos de significar o mundo. As novas mediações tecnológicas, a nova ordem de proximidades globais, a degenerescência da ideia de grandes códigos totalizantes e, por fim, a própria criação espontânea de ciberestruturas descentradas contribuíram decisivamente para desmontar o carácter holístico da macro-significação social. Como escrevemos noutro ensaio , esta tendência semiótica contemporânea é única na história da humanidade.
Daí que o papel da semiótica, no estatuir de laços interdisciplinares com outras áreas do saber, tenha, hoje em dia, uma importância capital. É importante que a maioria do público-alvo deste livro (os alunos de semiótica) seja seriamente motivada para esta questão fulcral das mediações epistemológicas. É a própria actualidade da rede que convida a semiótica a dialogar insistentemente com a neurobiologia , com a zoologia, com a arquitectura, com o cibermundo e com a artefactualidade digital que está, hoje em dia, a reenquadrar a própria noção de realidade.
Creio que muito em breve, a semiótica irá iniciar uma fase completamente nova e inovadora da sua já longa vida.