terça-feira, 11 de janeiro de 2005

Memória & caldeirada



Ontem, na RTP-Memória, passou uma das antigas "Noites de Teatro" que, pelo menos, entre o final dos anos cinquenta e o início dos anos 70, preenchiam o serão de Quinta-feira (ou era Terça-feira?).
Na peça de ontem, Ájax de Sófocles, Eunice Muñoz encarnava Tecmessa, em gravação de 1973, com produção exclusiva da televisão estatal.
No fim, fiquei sem saber de quem era a encenação, de grande qualidade, saliente-se, e a riquíssima construção do espaço cénico.
Um desafio para a altura, mas um desafio impossível nos nossos dias.
Hoje em dia, aquela duração impertinente e extremamente estética, aquela rasurada entrega ao tempo, aquela morosidade da palavra pronunciada e aquele denso e labiríntico cruzar de vozes jamais se poderiam tornar em "produto" televisivo.
Em pouco mais de trinta anos, o alinhamento das imagens veiculadas pela televisão "evoluiu" do paternalismo calculado ao calculismo gaiteiro e massificado.
Naquele tempo, a larga maior parte das pessoas não entendia aquelas imagens. Mas era o momento da "Noite de Teatro" e isso era o quanto bastava. Tratava-se de enunciar um poder referencial e reverencial, sem quaisquer concessões por parte de quem explicava ao povo o que devia ser e como devia ser (e a peça de ontem até escapava ao verosímil dominante na época).
No tempo de hoje, a larga maior parte da população nem chega a colocar a questão da compreensão. O poder está do lado do fluxo de imagens e, para além do prodígio dos deveres - essa natureza morta já sem qualquer sentido -, basta-se a si próprio, reproduz-se por si próprio e ensimesma-se por si próprio a bem das audiências e da alegria apolvilhada do nosso bom povo global.