sábado, 27 de março de 2004

A liberdade e os ressentidos



Antes do período experimental que conduziu ao Iluminismo e ao advento da modernidade, a liberdade era entendida como um dom de Deus, como uma condição espiritual que diferenciava o homem dos animais, ou ainda como uma qualidade que, conforme os contextos mais diversificados, se opunha às noções de servidão (há um congresso muito interessante sobre o tema, o Penn-Paris-Dumbarton Oaks Colloquia, editado com o título, La notion de liberté au Moyen Age - Islam, Byzance, Occident, 1995, Les Belles Lettres, Paris).
A ponte que liga seiscentos a setecentos encontra a pouco e pouco uma noção individualizada de liberdade, em conformidade com a progressiva visão de um sujeito autónomo que lentamente vai escapando à ideia de simples peça de um rebanho divino. A experiência e o poder de conjectura vão adquirindo primazia face a uma ordem universal e anterior (a pintura holandesa do século XVII, os inventos ópticos da mesma época e a arquitectura do vidro são disso sintomas). É curioso analisar o modo como a ideia de liberdade acompanha este período de transição.
Para Descartes, a liberdade tornou-se subitamente numa evidência que não podia ser subtraída à existência absoluta de Deus. Para Hobbes, a liberdade foi basicamente, de acordo com princípios físicos do seu tempo, a ausência de obstáculos. Para o grande barroco, a liberdade individual submetia-se (ao melhor dos mundos, caso de Leibniz) ou partilhava (caso de Espinosa) a alma divina universal. Para Hume, Locke e Voltaire, de modos diferentes, a necessidade e a vontade impunham-se à liberdade. Mas, fosse como fosse, ela era observada de frente e descomplexadamente por estes autores. Já Kant encontrou uma perspectiva mais valorativa para a liberdade ao atribuir-lhe, por um lado, um cariz espontâneo (idêntico ao da imaginação) de acordo com a criação natural e, por outro lado, um equilíbrio - ou seja uma não dependência - face à então recente ordenação racional e moderna do tempo (a ciência histórica como domínio do passado e o prenúncio do conceito de progresso como domínio do tempo futuro - a tese de doutoramento de Viriato Soromenho Marques sobre este último tema é de grande relevância).
O século XIX trocou - em grande parte - esta vasta tradição centrada na liberdade do sujeito individual pelos chamados macro-sujeitos (a humanidade de Comte, as classes marxistas, o espírito de Hegel). Muito do vivido no século XX ficou a dever-se a este apelo neo-escatológico e salvífico. O homem sonhou-se Deus, não como Fausto (lembro as aventuras aéreas de Murnau), mas como para-cientista destemido e auto-impositivo. Nietzsche sorriu em vão, Ortega parodiou em vão e as Grandes Guerras quase ocultavam descobertas fantásticas, e para alguns menores, tais como o monólogo interior, a heteronímia e as diatribes de Huxley.
Foi preciso entender nos eighties que as referências pesadas cristalizavam a humanidade e não estimulavam a democracia para que se voltasse a valorizar outra vez aquela ideia genuína que, até Kant e ao fantástico Émile de Rousseau, tinha levado cerca de dois séculos a ser congeminada. Pena é que os ressentidos da contemporaneidade não saibam respeitar e compreender esta caminhada e se limitem a tentar encontrar os bodes expiatórios dos seus males na convivialidade democrática actual, onde a liberdade é valor supremo e condição única e primeira para enfrentar todos os obstáculos locais e globais (interessante esta oposição ao Leviatã de Hobbes). Ofender a democracia chamando-lhe apenas “formal” é denegar precisamente o alicerce de onde ela brota e o exercício de abertura e de liberdade que alimenta esse mesmo brotar.