segunda-feira, 5 de janeiro de 2004

Loucura brevíssima


Botticelli, Primavera

Pode parecer uma loucura, porque é com efeito uma loucura supor vivencialmente uma coisa dois meses antes dela se prefigurar. Mas ontem, em plena tarde de sol maravilhado, ao interromper a leitura de um romance velho de trinta e cinco anos de idade (belo mosto!), dei comigo a dizer que isto era ou parecia ser um dia de Primavera. Mas não era. Era tão-só a imagem móvel, certa e precisa a correr na minha frente com lentidão godardiana e eu, do outro lado do lago, a pronunciar, em voz off, o texto da Primavera que parecia, ele sim, uma loucura. Árvores sem folhas, ramos sem fio, seivas sem dote, rebentos sem forma, mas, por outro lado, de verdade, era tal o prazer a deambular no ar azul e sem nuvens, era tal o fascínio a deambular sob aquele sol aberto e sem sombras, era tal a leveza a pairar naquela mornidão redentora e sem teias que eu me vi a clamar, em sigilo e sem freios, pela palavra Primavera. Hoje, como já se notou, vieram as nuvens altas e o céu adensou o seu mistério, ontem ainda tão apolineamente deslumbrado. Ritmos da natureza. Ritmos dos blogues.