quarta-feira, 28 de janeiro de 2004

Le Boeuf sur le Toit


Battista Sforza de Pierro Della Francesca

Ontem a autoestrada era uma bátega de chuva, hoje a autoestrada foi um quadro de Piero Della Francesca. Cada vez vivo mais tempo na autoestrada. Entre faixas e crisântemos imaginados, entre vozes da rádio e a passagem abrupta dos traços contínuos ou descontínuos, entre faróis e a desmedida suspensão da palavra. Cada vez mais as minhas cidades são aeroportos mascarados de memória involuntária. Anamorfoses com paredes de granito, ou com alvenarias a saber a basalto e a fontes de água fresca. No tempo em que vivia na Holanda, na década de oitenta, também assim era. Só que em vez de autoestradas eram linhas férreas. E em em vez do eixo Évora - Lisboa (onde agora estou), era o eixo Utreque - Amesterdão. Mas pouca diferença faz. E quando entro no culto dos interiores, ou seja, em casa, tanto faz saber que à minha volta o nome da cidade já não se confunde com a cidade que me empresta o nome à topografia interior. Vivo a dançar e sempre imaginei que um pas de deux mais não é do que uma celebração para distender o corpo sobre os telhados de uma cidade de cristal, fosse ela qual fosse. Talvez porque, com os meus seis ou sete anos, passou pelos meus olhos o preto e branco fotogénico de uma reportagem sobre jovens bailarinas que fugiam da Ópera, em Paris, para os telhados e para as varandas despovoadas. Nunca mais esqueci essa imagem. Esse delírio da alma saudosa. Esse estigma de um desejo sem fim. É ela mesma que prolonga as divisórias das minhas autoestradas de hoje. Minha dança, meu país sem leme. Cidades imperfeitas, planetas de papel.