sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O Natal


O Natal é uma era que passei a não gostar. Para mim, era ideal saltar de 20 para 27 de Dezembro num balão e, talvez, na companhia de René Clair. No meio do encanto hipnótico das crianças (único Natal que tem sentido), as famílias entram em estado de choque e as estatísticas dizem que os divórcios, as zangas intestinas e as desavenças (expostas ou guardadas a sete chaves) se tornam, de um momento para o outro, em vendaval. Este aspecto carnavalesco, que tanto toca a ilusão das cores como a sangria doméstica, é disfarçado pela música de cravo que ornamenta as nossas praças. Enfim, eu posso refugiar-me e sorrir. Há quem prefira entrar no baile com a devida venda nos olhos. A cada um a sua liberdade. Seja como for, a ironia diz-nos que o Natal sabe bem à lareira, que chegam mensagens cordatas via mail, FB ou sms, que há doces, que há redescobertas do passado (ir de bicicleta ao musgo), que há presentes. Que há surpresas. Tudo isso é verdade, mas tenho a sensação de que seria ainda melhor se nos deixassem realmente em paz. Eu disse "paz"?

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

A amizade é uma estética

A amizade é uma estética. Na morte de Carlos Pinto Coelho.




A amizade é um culto que se traduz através de uma crença que não tem nome. Um culto que se move e que está nos olhos de quem sabe protagonizar a amizade. Não há um centro na amizade, nem há um programa para a amizade. Ser-se amigo é dizer a intimidade sem filosofia e confidenciar o nome dos deuses sem qualquer deus por perto. Uma espécie de estética profunda, ainda que sem necessidade de arte.



Quando o dizer da amizade joga profundamente na vida, é verdade que se chega a tornar num dizer quase invisível. Tão transparente que mal se deslinda. Passa a ser um dizer oculto. Basta-nos o estar lá. O aparecer, ou tão-só o revelar-se de quando em quando. Mas quando o móbil da amizade desaparece – a morte, sim a morte! –, salta de imediato aos olhos esse dizer espesso de amigo e toda a sua relevância feita de matéria concreta.



O problema é já não poder entrar no escritório para dizer a quem já lá não está: “Mas por que raio é que morreste, meu grande sacana?”. Eu gosto dos verões a escaldar com o Carlos Pinto Coelho a chegar à minha casa de camisola branca e com uma garrafa de JB debaixo do braço. A Clara sorria e sabia perfeitamente que o mundo ali se reiniciava. Sim: como se a máquina do mundo tivesse bloqueado e fosse nossa tarefa, agora, reiniciar tudo de novo. É isso a amizade: um dom que existe para gerar outros dons.



O José M. Rodrigues fotografava os pequenos logros, os grandes acasos e os folhos do cortinado onde esvoaçavam palavras em forma de leque. O Carlos mostrava as suas paisagens de África como se fossem chão a respirar virgindade. A Fátima e a Isabel cantavam. O Alberto dizia o Régio que depois engrenava em uníssono. A Clara abria as papoilas como se o limoeiro do pátio estalasse à procura da sua sombra. E havia muitos outros nomes a fazer coisas que incendiavam o nada: esse planeta onde a poiesis da vida é coisa sagrada.



Era disso que eu gostava e é sobre isso que vale a pena escrever numa morte. Porque morrer é uma casa enorme sem geografia. Um aceno amputado. Um adeus que diz 'vem cá'. Ainda que a viagem literalmente continue: há-de ser verão e a linha de Mora, desalojada e erma, voltará um dia a ser fotografada. E há ainda o Harry´s Bar semeado entre xisto algarvio e umas oliveiras insanes que brotam da terra onde menos se espera. Como o maracujá da Madeira a bordo do gin tónico. Ou a minha trapista a bater o coração.



E pronto. Eu tinha que escrever em Évora por causa da morte de um amigo que ajudei a trazer para cá. Não que eu esteja em paz em Évora. Mas há deveres que são como a chuva. Estão muito para além da intriga menor e do juízo das narrativas de porcelana. Molham e fazem do corpo um mar que se revolta com a extrema mansidão das estatuetas. Eu hoje vou subir ao meu terraço e vou olhar para o fundo. No limiar do continente, vou voltar a segredar-lhe – sou muito chato! – que a amizade é um culto que se traduz através de uma crença que não tem nome.