Às vezes, pergunto-me: quando é que realmente chega a Primavera?
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quarta-feira, 30 de abril de 2008
segunda-feira, 28 de abril de 2008
A Moeda Viva
e
Luís Lima traduziu recentemente A Moeda Viva de Pierre Klossowsky. A propósito deste facto relevante, manifestei, desde finais de Fevereiro, todo o meu interesse em publicar o texto de Luís Lima sobre a própria experiência da tradução, dado o interesse da obra e desse ofício secreto que é a própria rescrita. No entanto, diversas vicissitudes - que têm contribuído para um certo adormecimento (passageiro) deste blogue - atrasaram este meu desejo. Cumpro-o hoje, penitenciando-me publicamente pelo atraso, embora com a certeza de que a obra recobre, no seu ardil reflexivo, uma dose de intemporalidade que acaba por atenuar este meu pequeno pecado.
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"TRADUZIR: A MOEDA VIVA"
e
"Se tivesse de eleger um único fragmento d’A Moeda Viva[1], como se diz, para a posteridade, seria este: «só existe uma comunicação universal autêntica: a troca dos corpos pela linguagem secreta dos signos corporais». Primeiro, porque esta passagem aponta para a impossibilidade de expressar numa outra língua a singularidade do ser textual a traduzir, a não ser por via de uma escrita intuitiva, guiada por sinais vindos do corpo e transmitidos pela pele. Depois, porque o excerto revela a principal linha de força do ensaio de Pierre Klossowski: a expressividade.
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Não me propondo aqui fazer uma leitura d’ A Moeda Viva (mas tão-só um breve apontamento sobre a experiência de traduzir o autor), obrigatória é, no entanto, a alusão à diversidade de termos e conceitos que povoam e assombram, quais fantasmas, para melhor o constituir, o território do discurso. Essa multiplicidade gera assim um estilo único, uma voz inconfundível, uma univocidade do ser; ou seja, uma única expressão para os seus múltiplos termos, fantasmas, simulacros. Eis a expressão do pensamento de um monómano – alguém que se fixa, repetidamente, numa única cena diversificada ora pelo acto, ora pelo objecto do acto, ora pelo actor: um corpo que se dá a ver a outro, nem que seja de si para si. Ora, esta encenação serviu, precisamente, o trabalho do tradutor.
Não me propondo aqui fazer uma leitura d’ A Moeda Viva (mas tão-só um breve apontamento sobre a experiência de traduzir o autor), obrigatória é, no entanto, a alusão à diversidade de termos e conceitos que povoam e assombram, quais fantasmas, para melhor o constituir, o território do discurso. Essa multiplicidade gera assim um estilo único, uma voz inconfundível, uma univocidade do ser; ou seja, uma única expressão para os seus múltiplos termos, fantasmas, simulacros. Eis a expressão do pensamento de um monómano – alguém que se fixa, repetidamente, numa única cena diversificada ora pelo acto, ora pelo objecto do acto, ora pelo actor: um corpo que se dá a ver a outro, nem que seja de si para si. Ora, esta encenação serviu, precisamente, o trabalho do tradutor.
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A primeira versão portuguesa do texto foi redigida em 2001, foram, assim, necessários sete anos, número mágico (na ocorrência), para encontrar o lugar e o momento exacto para a sua publicação. Depois do encontro inicial, o da ligação, com José Bragança de Miranda, veio o encontro final, o da construção, com a Antígona. Um encontro para um acontecimento, uma vez por todas. O texto foi retomado, revisto, reescrito – numa palavra, reencontrado –, para pactuar com um processo que veio aumentar a sua respectiva imanência, tornando-o diverso, repleto de dobras e linhas de fuga. A tradução ganhava assim, por sua conta, a diversidade que lhe era indispensável para poder alinhar-se, ainda que paralelamente, com o texto que clamava ser traduzido.
A primeira versão portuguesa do texto foi redigida em 2001, foram, assim, necessários sete anos, número mágico (na ocorrência), para encontrar o lugar e o momento exacto para a sua publicação. Depois do encontro inicial, o da ligação, com José Bragança de Miranda, veio o encontro final, o da construção, com a Antígona. Um encontro para um acontecimento, uma vez por todas. O texto foi retomado, revisto, reescrito – numa palavra, reencontrado –, para pactuar com um processo que veio aumentar a sua respectiva imanência, tornando-o diverso, repleto de dobras e linhas de fuga. A tradução ganhava assim, por sua conta, a diversidade que lhe era indispensável para poder alinhar-se, ainda que paralelamente, com o texto que clamava ser traduzido.
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Os termos, os conceitos, o frasear, foram sempre constrangidos e como que forçados pelo carrasco da sintaxe de maneira a manter perceptível, numa nova língua, a vítima suprema: o texto ainda não traduzido, virgem. Mas esse clamor klossowskiano exigia já e ainda um retorno do seu movimento interno: o da supremacia da musicalidade da expressão sobre a sintaxe. E é isto que sucede no frasear d’A Moeda Viva. O meu papel consistiu aqui em versar um ensaio filosófico, mas também em manobrar uma obra poética e literária, forjada num gesto de repetição, mas repetição da diferença, a diferença de um estilo. Este trabalho da segunda mão, da tradução, veio assim fechar um círculo que estava viciado pelo desejo de tradução, com recurso à libertação de um simulacro de texto: uma declinação diferencial na séria das línguas estrangeiras e estranhas à vítima virginal. O movimento simultâneo de encenação exibicionista e voyeurista – interno ao texto – assentou que nem uma luva ao meu papel de tradutor e permitiu a criação de uma nova epiderme, uma nova matéria textual capaz de realizar, afinal, um devir: «a troca dos corpos pela linguagem secreta dos signos corporais». Se tiver sido bem sucedida, esta nova camada aposta ao texto virgem será a sua moeda viva, ao mesmo tempo o corpo textual que clamava ser traduzido e a sua tradução."
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*/[1] Klossowski, Pierre (2008): A Moeda Viva, ed. Antígona, trad. Luís Lima, (ed. original 1970, Éd. Terrain Vague, Eric Losfeld), Lisboa.
Os termos, os conceitos, o frasear, foram sempre constrangidos e como que forçados pelo carrasco da sintaxe de maneira a manter perceptível, numa nova língua, a vítima suprema: o texto ainda não traduzido, virgem. Mas esse clamor klossowskiano exigia já e ainda um retorno do seu movimento interno: o da supremacia da musicalidade da expressão sobre a sintaxe. E é isto que sucede no frasear d’A Moeda Viva. O meu papel consistiu aqui em versar um ensaio filosófico, mas também em manobrar uma obra poética e literária, forjada num gesto de repetição, mas repetição da diferença, a diferença de um estilo. Este trabalho da segunda mão, da tradução, veio assim fechar um círculo que estava viciado pelo desejo de tradução, com recurso à libertação de um simulacro de texto: uma declinação diferencial na séria das línguas estrangeiras e estranhas à vítima virginal. O movimento simultâneo de encenação exibicionista e voyeurista – interno ao texto – assentou que nem uma luva ao meu papel de tradutor e permitiu a criação de uma nova epiderme, uma nova matéria textual capaz de realizar, afinal, um devir: «a troca dos corpos pela linguagem secreta dos signos corporais». Se tiver sido bem sucedida, esta nova camada aposta ao texto virgem será a sua moeda viva, ao mesmo tempo o corpo textual que clamava ser traduzido e a sua tradução."
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*/[1] Klossowski, Pierre (2008): A Moeda Viva, ed. Antígona, trad. Luís Lima, (ed. original 1970, Éd. Terrain Vague, Eric Losfeld), Lisboa.
Episódios e Meteoros - 81
E
O paradoxo de Abril
E
d e3
Uma das características do antigo regime traduzia-se pelo facto de este se ver a si próprio como algo imutável. Essa característica era de tal modo forte que aparecia, de um modo ou de outro, impregnada em toda a população portuguesa até Abril de 1974. Apesar dos últimos anos de guerra em África e dos sintomas de desagregação (hoje historicamente perceptíveis), a verdade é que assim era. Esta ideia de um edifício que jamais cairia estava realmente interiorizada quer por quem defendia o regime, quer por quem a ele se opunha em nome da liberdade.
e
A prova deste facto, raramente aprofundado, é que o 25 de Abril de 1974 se revelou, de início, através de uma admiração generalizada: de um momento para o outro, quase por magia, tudo se passou como se o universo inteiro, embora com o inadvertido peso de uma pena, tivesse caído por terra sem vacilar minimamente. Este paradoxo que opõe a ideia de algo que não pode mudar à súbita ilusão de uma mudança sem fim ainda hoje continua a ser o pano de fundo da liturgia comemorativa.
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O mais interessante é que o aparente domínio deste paradoxo se transformou na matéria de que foi feita a própria revolução, entre Abril 1974 e o fim de 1975. Nesses dois anos, a sociedade portuguesa voou entre o vórtice, o clímax e a voragem como se fosse possível, para sempre, alterar as ordens de um universo que teria – pensou-se – o singular peso de uma pena. Só que a sociedade convulsiva que lia esse ‘livro do tempo’ se baseava ainda em receituários muito fixos e ideológicos e sobretudo num tipo de comunicação vertical que ligava vastos (e motivados) auditórios a um número muitíssimo restrito de emissores. Mais: essa sociedade ainda não havia entendido a natureza da democracia.
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Hoje tudo mudou radicalmente. Aliás, é difícil a quem tem menos de trinta e cinco anos perceber a lógica de um paradoxo que colocava num dos lados da balança uma sociedade que dizia a si mesma que jamais mudaria. O nosso tempo é, com efeito, uma aventura sem precedentes, na medida em que alia a comunicação em rede (cada um de nós pode ser emissor) à disputa de princípios e valores plurais no quadro democrático. Com um grande senão: é que a democracia não decorre apenas da silhueta mais ou menos imóvel – ou imutável – das suas instituições. O que a realiza e o que a torna em garante da liberdade é a ilimitada polémica e o permanente contraditório do espaço público.
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Neste último ponto (e em certas áreas que não augurarão nunca perfeição: saúde, educação, contribuições sociais, peso do estado, etc.), a democracia em que navegamos apenas tem pela frente a ininterrupta necessidade de aprofundamento. Como se o futuro fosse, afinal, uma pena na mão de cada um de nós e não uma pena desflorada por alguém que, um dia, a todos surpreendeu. É nessa celebração diária, comprometida e activa – e não na elementarmente reivindicativa – que a metáfora de Abril poderá, ainda hoje em dia, encaixar-se. De resto, acredito fielmente que o nosso tempo é mais sadiamente revolucionário de que os anos de 74 e 75.
Uma das características do antigo regime traduzia-se pelo facto de este se ver a si próprio como algo imutável. Essa característica era de tal modo forte que aparecia, de um modo ou de outro, impregnada em toda a população portuguesa até Abril de 1974. Apesar dos últimos anos de guerra em África e dos sintomas de desagregação (hoje historicamente perceptíveis), a verdade é que assim era. Esta ideia de um edifício que jamais cairia estava realmente interiorizada quer por quem defendia o regime, quer por quem a ele se opunha em nome da liberdade.
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A prova deste facto, raramente aprofundado, é que o 25 de Abril de 1974 se revelou, de início, através de uma admiração generalizada: de um momento para o outro, quase por magia, tudo se passou como se o universo inteiro, embora com o inadvertido peso de uma pena, tivesse caído por terra sem vacilar minimamente. Este paradoxo que opõe a ideia de algo que não pode mudar à súbita ilusão de uma mudança sem fim ainda hoje continua a ser o pano de fundo da liturgia comemorativa.
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O mais interessante é que o aparente domínio deste paradoxo se transformou na matéria de que foi feita a própria revolução, entre Abril 1974 e o fim de 1975. Nesses dois anos, a sociedade portuguesa voou entre o vórtice, o clímax e a voragem como se fosse possível, para sempre, alterar as ordens de um universo que teria – pensou-se – o singular peso de uma pena. Só que a sociedade convulsiva que lia esse ‘livro do tempo’ se baseava ainda em receituários muito fixos e ideológicos e sobretudo num tipo de comunicação vertical que ligava vastos (e motivados) auditórios a um número muitíssimo restrito de emissores. Mais: essa sociedade ainda não havia entendido a natureza da democracia.
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Hoje tudo mudou radicalmente. Aliás, é difícil a quem tem menos de trinta e cinco anos perceber a lógica de um paradoxo que colocava num dos lados da balança uma sociedade que dizia a si mesma que jamais mudaria. O nosso tempo é, com efeito, uma aventura sem precedentes, na medida em que alia a comunicação em rede (cada um de nós pode ser emissor) à disputa de princípios e valores plurais no quadro democrático. Com um grande senão: é que a democracia não decorre apenas da silhueta mais ou menos imóvel – ou imutável – das suas instituições. O que a realiza e o que a torna em garante da liberdade é a ilimitada polémica e o permanente contraditório do espaço público.
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Neste último ponto (e em certas áreas que não augurarão nunca perfeição: saúde, educação, contribuições sociais, peso do estado, etc.), a democracia em que navegamos apenas tem pela frente a ininterrupta necessidade de aprofundamento. Como se o futuro fosse, afinal, uma pena na mão de cada um de nós e não uma pena desflorada por alguém que, um dia, a todos surpreendeu. É nessa celebração diária, comprometida e activa – e não na elementarmente reivindicativa – que a metáfora de Abril poderá, ainda hoje em dia, encaixar-se. De resto, acredito fielmente que o nosso tempo é mais sadiamente revolucionário de que os anos de 74 e 75.
quinta-feira, 24 de abril de 2008
terça-feira, 22 de abril de 2008
Volta ao Mundo - 19
e
Entretanto, chegou-me a última crónica da volta ao mundo da Clara Faria Piçarra e do Miguel Sacramento. Após sete meses de viagem, a origem do texto, desta vez, é o Cambodja.
e
"Cambodja"
e"Hoje caem-me as palavras das mãos. Sem que repare, espalham-se no meu colo. Quase com som. Quase com peso. Palavras.
ee
(e eu sem bolsos)
(e eu sem bolsos)
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Verde? Guerra? Ferida? O que querem dizer? Vou escrevendo com atenção para não as perder. Lembro-me de uma memória: "Quando chegar ao Cambodja quero saber o que pensa quem vive ao lado de uma Maravilha do Mundo". Maravilha. Do. Mundo. Três palavras que caem para o chão.
Verde? Guerra? Ferida? O que querem dizer? Vou escrevendo com atenção para não as perder. Lembro-me de uma memória: "Quando chegar ao Cambodja quero saber o que pensa quem vive ao lado de uma Maravilha do Mundo". Maravilha. Do. Mundo. Três palavras que caem para o chão.
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(e eu sem bolsos)
(e eu sem bolsos)
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Concentro-me. No dia que cheguei ao Cambodja perdi o medo de aqui chegar. Era assim que queria começar. (Fantasmas. Campos. Puro.). Mesmo guardadas entre parênteses interrompem o rumo da história. Porquê? Talvez por não ser uma história simples.
e e
Era de manhã cedo e o ar já não se respirava. Tínhamos acabado de chegar ao museu: a antiga prisão do regime Pol Pot. Estávamos numa terra ferida de morte. Sentia-se o mundo a mudar de cor, a desfazer-se em contornos. Não há livro que nos prepare para pisar a História. Mas há pessoas. Na noite anterior, sentados à porta da rua, a conversa tinha-se prolongado sem esforço. Receberam-nos com o calor dos gestos simples. Os únicos capazes de diluir os medos. Era nisso que pensava. As ossadas que via espalhadas no chão combatiam-se com a recordação da gargalhada fácil da vendedora de livros; o terror das torturas com o olhar castanho do remador do lago; a humilhação, a violação, o silêncio de milhões com o sorriso dos velhos que passavam. É muito difícil matar um povo.
Concentro-me. No dia que cheguei ao Cambodja perdi o medo de aqui chegar. Era assim que queria começar. (Fantasmas. Campos. Puro.). Mesmo guardadas entre parênteses interrompem o rumo da história. Porquê? Talvez por não ser uma história simples.
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Era de manhã cedo e o ar já não se respirava. Tínhamos acabado de chegar ao museu: a antiga prisão do regime Pol Pot. Estávamos numa terra ferida de morte. Sentia-se o mundo a mudar de cor, a desfazer-se em contornos. Não há livro que nos prepare para pisar a História. Mas há pessoas. Na noite anterior, sentados à porta da rua, a conversa tinha-se prolongado sem esforço. Receberam-nos com o calor dos gestos simples. Os únicos capazes de diluir os medos. Era nisso que pensava. As ossadas que via espalhadas no chão combatiam-se com a recordação da gargalhada fácil da vendedora de livros; o terror das torturas com o olhar castanho do remador do lago; a humilhação, a violação, o silêncio de milhões com o sorriso dos velhos que passavam. É muito difícil matar um povo.
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Foi assim que perdi o medo de cá chegar. E pude continuar. Pelos campos inundados de verde, pelas casas sobre estacas de madeira, pela facilidade do improviso, pelos rostos profundos de segredos íntimos. Até chegar à memória inicial. O que sente alguém por viver ao lado de uma Maravilha do Mundo? Sinto a sombra única de Angkor recortada no Lago. Sonhos? Conhecer outro lugar. Outro. Lugar. Vejo as palavras a caírem-me do colo. Quase com som. Quase com peso. Não conhece outro lugar. Apenas aqueles que não se conhecem a viajar. Silêncios que não têm geografias."
Foi assim que perdi o medo de cá chegar. E pude continuar. Pelos campos inundados de verde, pelas casas sobre estacas de madeira, pela facilidade do improviso, pelos rostos profundos de segredos íntimos. Até chegar à memória inicial. O que sente alguém por viver ao lado de uma Maravilha do Mundo? Sinto a sombra única de Angkor recortada no Lago. Sonhos? Conhecer outro lugar. Outro. Lugar. Vejo as palavras a caírem-me do colo. Quase com som. Quase com peso. Não conhece outro lugar. Apenas aqueles que não se conhecem a viajar. Silêncios que não têm geografias."
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As últimas crónicas do Expresso Online
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EPISÓDIOS E METEOROS
- 80 –
- 80 –
e
Está na moda atacar e diabolizar os cães. Tudo começa sempre por qualquer coisa que bate certo: raças agressivas que os donos não enquadram devidamente. Mas depois, a cruzada generaliza-se e amplia-se como um grito que adoraria mortificar as consciências menos pesadas. O meu cão já é velhote e mal se levanta. Olha para mim com uma ternura paradisíaca que está nos antípodas de qualquer encruzilhada de guerra. Provavelmente já não viverá o suficiente para ver as Noites de Cristal que meio mundo educado e culto gostaria de levar a cabo hoje mesmo. A sorte que o meu Ulisses tem!
d
Está também na moda atacar os fumadores. Já é um clássico. Tudo começa por uma lei que ameaça separar a normal proximidade entre o fumo do tabaco e a aspiração de um ar ilimitadamente puro e urbano. Mas depois, a cruzada faz fé e torna-se em vingança carnavalesca. E os desgraçados que, nas procissões medievais, eram pedintes ou leprosos à porta dos castelos tornam-se hoje em fumadores à porta das repartições públicas. Já há até designers a conceberem cinzeiros de rua: objectos de ferro retorcido que lembram relíquias presas a armaduras de exércitos derrotados. O meu cão gosta da ideia e se fosse mais novo, alçaria a perna e celebrava o acontecimento.
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Não vá o diabo tecê-las, a verdade é que hoje existe igualmente um certo espaço para a salvação das almas. Uma das novas deusas chama-se “Património”. O conceito é imberbe, tem poucas décadas, mas, ao lado do consumo de imagens e do corpo eternamente jovem dos ginásios, acaba por encarnar uma bela adormecida do nosso tempo. Experimentem fazer uma obra num desses locais emblemáticos que disputam o epíteto de “património mundial” e logo verão surgir a terreiro os novos iluminados, cujo sentido de vida é ordenar que o azul apareça uns cinco centímetros mais acima, que a madeira envolva a janela em vez do vento, ou que o telhado voe à altura das telhas. E se a nova religião já existisse no início do século XVI, teriam os Jerónimos sido levados a bom termo? Duvido. Muito Sinceramente. E o meu cão também.
d
Há uma febre proibitiva que anda no ar. E uma outra levemente salvífica que com esta dança o tango. Verso e reverso do mesmo apego por versículos e fatwas imaginárias. Como se o mainstream do Ocidente desejasse ter a sua própria sharia. À nossa volta está, de facto, a crescer um império invisível que persegue as causas menos suspeitas e os hábitos mais elementares. E em Portugal os cidadãos, subitamente, passaram a gostar de ser mais papistas do que o papa. Mais alemães e finlandeses do que os próprios alemães e os finlandeses.
d
Vivemos uma época de redenção sem doutrina. Respiramos uma vaga que se espalha como uma boa nova apostólica e tecnológica a que não faltam milagres. Qual esquerda, qual direita! As pessoas querem é que as deixem em paz: televisão, olhinho online e nada mais. E regras e mais regras para amputar o mais espontâneo e ingénuo sangue na guelra em nome de um condomínio privado chamado correcção. O meu cão fecha entretanto os olhos. Nada melhor do que a melancolia de um pouco de estrume para poder sonhar. À vontade. Sobretudo com coisas proibidas.
Está na moda atacar e diabolizar os cães. Tudo começa sempre por qualquer coisa que bate certo: raças agressivas que os donos não enquadram devidamente. Mas depois, a cruzada generaliza-se e amplia-se como um grito que adoraria mortificar as consciências menos pesadas. O meu cão já é velhote e mal se levanta. Olha para mim com uma ternura paradisíaca que está nos antípodas de qualquer encruzilhada de guerra. Provavelmente já não viverá o suficiente para ver as Noites de Cristal que meio mundo educado e culto gostaria de levar a cabo hoje mesmo. A sorte que o meu Ulisses tem!
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Está também na moda atacar os fumadores. Já é um clássico. Tudo começa por uma lei que ameaça separar a normal proximidade entre o fumo do tabaco e a aspiração de um ar ilimitadamente puro e urbano. Mas depois, a cruzada faz fé e torna-se em vingança carnavalesca. E os desgraçados que, nas procissões medievais, eram pedintes ou leprosos à porta dos castelos tornam-se hoje em fumadores à porta das repartições públicas. Já há até designers a conceberem cinzeiros de rua: objectos de ferro retorcido que lembram relíquias presas a armaduras de exércitos derrotados. O meu cão gosta da ideia e se fosse mais novo, alçaria a perna e celebrava o acontecimento.
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Não vá o diabo tecê-las, a verdade é que hoje existe igualmente um certo espaço para a salvação das almas. Uma das novas deusas chama-se “Património”. O conceito é imberbe, tem poucas décadas, mas, ao lado do consumo de imagens e do corpo eternamente jovem dos ginásios, acaba por encarnar uma bela adormecida do nosso tempo. Experimentem fazer uma obra num desses locais emblemáticos que disputam o epíteto de “património mundial” e logo verão surgir a terreiro os novos iluminados, cujo sentido de vida é ordenar que o azul apareça uns cinco centímetros mais acima, que a madeira envolva a janela em vez do vento, ou que o telhado voe à altura das telhas. E se a nova religião já existisse no início do século XVI, teriam os Jerónimos sido levados a bom termo? Duvido. Muito Sinceramente. E o meu cão também.
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Há uma febre proibitiva que anda no ar. E uma outra levemente salvífica que com esta dança o tango. Verso e reverso do mesmo apego por versículos e fatwas imaginárias. Como se o mainstream do Ocidente desejasse ter a sua própria sharia. À nossa volta está, de facto, a crescer um império invisível que persegue as causas menos suspeitas e os hábitos mais elementares. E em Portugal os cidadãos, subitamente, passaram a gostar de ser mais papistas do que o papa. Mais alemães e finlandeses do que os próprios alemães e os finlandeses.
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Vivemos uma época de redenção sem doutrina. Respiramos uma vaga que se espalha como uma boa nova apostólica e tecnológica a que não faltam milagres. Qual esquerda, qual direita! As pessoas querem é que as deixem em paz: televisão, olhinho online e nada mais. E regras e mais regras para amputar o mais espontâneo e ingénuo sangue na guelra em nome de um condomínio privado chamado correcção. O meu cão fecha entretanto os olhos. Nada melhor do que a melancolia de um pouco de estrume para poder sonhar. À vontade. Sobretudo com coisas proibidas.
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EPISÓDIOS E METEOROS
- 79 –
- 79 –
d
O campeonato do papa angélico
O campeonato do papa angélico
d
Quando o meu clube não ganha o campeonato, não levo a sério nada do que se possa relacionar com futebol. Luxos menores. Mais: passo a rever na alegria alheia o sintoma da maior das idiotices da espécie humana. E descubro, menos – muitíssimo menos – nos adeptos, mas sobretudo nos seus mentores, aquele rosto visivelmente aparolado que é próprio dos alcapones de alterne. São dias em que rio à gargalhada para dentro. Como um Aladino a quem retiraram, de vez, a lâmpada mágica.
s
Nestas alturas, entro suavemente naquele estado de crisálida que o futebol tão bem definiu como “defeso”, uma nova dimensão teológica do limbo que permite às almas descansar e, ao mesmo tempo, aguardar pela possibilidade de melhores dias. Nem sempre a ponte que sobrevoa o inferno – a Sirât – é assim tão desinspiradora. Disso sabe, não quem perde, mas quem por momentos deixou de ganhar. É esse o meu caso.
s
Na praça da política, curiosamente, passa-se algo bastante parecido. Quase tirado a papel químico. Sabem porquê? Precisamente, porque a larga maioria das pessoas não leva os políticos muito a sério. Disso sabe toda a gente menos os visados. Os políticos, tal como os físicos no aquário das equações que só eles entendem, vivem, na maior parte do tempo, entre a lufa-lufa de um carrossel agitado que circula à volta de si mesmo. Daí a redundância e o ruído das habilidosas verves, cuja auto-imagem é prosaica e serena, mas que, vista de fora, ou seja, da feira, é essencialmente paródica e hilariante.
s
O que significa que o público em geral vive como se o seu clube raramente, ou mesmo nunca, ganhasse. Ao invés, para os políticos, o clube do coração é sempre um arco-íris imbatível. Esta simetria, própria de teatros que encenam peças que nada têm em comum, só episodicamente é desfeita. Porque são poucos os momentos em que se forma um lastro de seriedade entre os políticos e o mais comum dos indígenas. E quando tal sucede, o que está em causa são sobretudo motivos simbólicos, passando, nessas alturas, os políticos a envergar as vestes sacerdotais de supremos mediadores (como aconteceu em alturas como a entrada para a CEE em 1986, a Expo98 ou o caso de Timor em 1999).
s
No futebol, não há sacerdotes, nem mediadores. Apenas papas e mandamentos enviesados. Mas o lastro de seriedade, esse, bem pode morrer na praia. Recuo, por isso mesmo, ao meu limbo e tudo faço para que venham dias melhores. E aos políticos não faria mal nenhum que sobrevoassem, também, de vez em quando, a tal ponte que sobrevoa o inferno: a inspiradora Sirât.
Quando o meu clube não ganha o campeonato, não levo a sério nada do que se possa relacionar com futebol. Luxos menores. Mais: passo a rever na alegria alheia o sintoma da maior das idiotices da espécie humana. E descubro, menos – muitíssimo menos – nos adeptos, mas sobretudo nos seus mentores, aquele rosto visivelmente aparolado que é próprio dos alcapones de alterne. São dias em que rio à gargalhada para dentro. Como um Aladino a quem retiraram, de vez, a lâmpada mágica.
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Nestas alturas, entro suavemente naquele estado de crisálida que o futebol tão bem definiu como “defeso”, uma nova dimensão teológica do limbo que permite às almas descansar e, ao mesmo tempo, aguardar pela possibilidade de melhores dias. Nem sempre a ponte que sobrevoa o inferno – a Sirât – é assim tão desinspiradora. Disso sabe, não quem perde, mas quem por momentos deixou de ganhar. É esse o meu caso.
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Na praça da política, curiosamente, passa-se algo bastante parecido. Quase tirado a papel químico. Sabem porquê? Precisamente, porque a larga maioria das pessoas não leva os políticos muito a sério. Disso sabe toda a gente menos os visados. Os políticos, tal como os físicos no aquário das equações que só eles entendem, vivem, na maior parte do tempo, entre a lufa-lufa de um carrossel agitado que circula à volta de si mesmo. Daí a redundância e o ruído das habilidosas verves, cuja auto-imagem é prosaica e serena, mas que, vista de fora, ou seja, da feira, é essencialmente paródica e hilariante.
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O que significa que o público em geral vive como se o seu clube raramente, ou mesmo nunca, ganhasse. Ao invés, para os políticos, o clube do coração é sempre um arco-íris imbatível. Esta simetria, própria de teatros que encenam peças que nada têm em comum, só episodicamente é desfeita. Porque são poucos os momentos em que se forma um lastro de seriedade entre os políticos e o mais comum dos indígenas. E quando tal sucede, o que está em causa são sobretudo motivos simbólicos, passando, nessas alturas, os políticos a envergar as vestes sacerdotais de supremos mediadores (como aconteceu em alturas como a entrada para a CEE em 1986, a Expo98 ou o caso de Timor em 1999).
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No futebol, não há sacerdotes, nem mediadores. Apenas papas e mandamentos enviesados. Mas o lastro de seriedade, esse, bem pode morrer na praia. Recuo, por isso mesmo, ao meu limbo e tudo faço para que venham dias melhores. E aos políticos não faria mal nenhum que sobrevoassem, também, de vez em quando, a tal ponte que sobrevoa o inferno: a inspiradora Sirât.
domingo, 20 de abril de 2008
E eis que criei uma loja - 4
segunda-feira, 7 de abril de 2008
Episódios e Meteoros - 78
e
Crónica dos professores degolados
e
As palavras de ordem são assim: vêm, multiplicam-se e impõem-se a quem as reproduz como sintoma de uma infinita liberdade tão ilusória quanto alarve. Uma espécie de invenção da força da gravidade a sós que leva meio mundo a soletrar “É assim…”, “nesta matéria…”, “alegadamente…”, etc. Nos últimos meses, sempre que a ideia é confirmar qualquer coisa, a frase passou a terminar com “Certo?”.
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Um “Certo?” que corta e remata a sequência anterior.
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No fundo, trata-se de uma interrogação breve que não espera qualquer resposta. Do mesmo modo que um slogan também não espera resposta. Como um dia o meu colega António Fidalgo escreveu, a um slogan responde-se apenas com um outro slogan. Do mesmo modo que a um “Certo?” apenas se responde como um outro “Certo?”.
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Certo?
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É por isso que o “Certo?” se reproduz à moda dos coelhinhos na pradaria da solidão expressiva. E não pára de se fazer ouvir como se o orgulho próprio se resumisse à capacidade de repetir “Certo?”. Mas um “Certo?” dito e reiterado de modo apropriado, sociável e particularmente correcto. Às vezes, chego a perguntar: por que não alterna o indígena o “Certo?” com o “Acerto?”? A alternância sempre dava mais ritmo e samba à doce melopeia.
e
Mas a voragem não passa apenas pelo paso doble das palavras. Longe disso. O país assistiu recentemente, sem qualquer admiração, ao frenético ‘vídeo do telemóvel’ do Liceu Carolina Michaelis. Uma repetição que culminou com a fotografia da professora (agredida) na primeira página do Público. Qualquer coisa a meio caminho entre a revolução cultural chinesa de Mao, a especiaria exótica das Índias, ou a exposição (religiosa) da vítima sem possibilidade de redenção.
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Depois do sucesso de audiências do vídeo, a palavra de ordem fez história. E continua a fazer. Tal como acontece com os blogues há já dois anos, o YouTube inundou, subitamente e em jeito de avalanche, o caudal dos media com imagens e mais imagens de “porrada” nas salas de aulas. Como se Portugal se tivesse transformado numa cascata de múltiplos ecrãs, desenterrados do fundo dos mares, onde os peixes se comem uns aos outros com dentes aguçados e finos. Espadas, escamas e sangue. Algas, professores degolados e um som arrastado à moda dos escafandros que não mais voltarão à superfície.
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“É assim:” (…) “Nesta matéria”, nunca digas “desta fonte não beberei!” “Jamais” (aliás, “jamés”). “Certo?”
As palavras de ordem são assim: vêm, multiplicam-se e impõem-se a quem as reproduz como sintoma de uma infinita liberdade tão ilusória quanto alarve. Uma espécie de invenção da força da gravidade a sós que leva meio mundo a soletrar “É assim…”, “nesta matéria…”, “alegadamente…”, etc. Nos últimos meses, sempre que a ideia é confirmar qualquer coisa, a frase passou a terminar com “Certo?”.
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Um “Certo?” que corta e remata a sequência anterior.
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No fundo, trata-se de uma interrogação breve que não espera qualquer resposta. Do mesmo modo que um slogan também não espera resposta. Como um dia o meu colega António Fidalgo escreveu, a um slogan responde-se apenas com um outro slogan. Do mesmo modo que a um “Certo?” apenas se responde como um outro “Certo?”.
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Certo?
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É por isso que o “Certo?” se reproduz à moda dos coelhinhos na pradaria da solidão expressiva. E não pára de se fazer ouvir como se o orgulho próprio se resumisse à capacidade de repetir “Certo?”. Mas um “Certo?” dito e reiterado de modo apropriado, sociável e particularmente correcto. Às vezes, chego a perguntar: por que não alterna o indígena o “Certo?” com o “Acerto?”? A alternância sempre dava mais ritmo e samba à doce melopeia.
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Mas a voragem não passa apenas pelo paso doble das palavras. Longe disso. O país assistiu recentemente, sem qualquer admiração, ao frenético ‘vídeo do telemóvel’ do Liceu Carolina Michaelis. Uma repetição que culminou com a fotografia da professora (agredida) na primeira página do Público. Qualquer coisa a meio caminho entre a revolução cultural chinesa de Mao, a especiaria exótica das Índias, ou a exposição (religiosa) da vítima sem possibilidade de redenção.
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Depois do sucesso de audiências do vídeo, a palavra de ordem fez história. E continua a fazer. Tal como acontece com os blogues há já dois anos, o YouTube inundou, subitamente e em jeito de avalanche, o caudal dos media com imagens e mais imagens de “porrada” nas salas de aulas. Como se Portugal se tivesse transformado numa cascata de múltiplos ecrãs, desenterrados do fundo dos mares, onde os peixes se comem uns aos outros com dentes aguçados e finos. Espadas, escamas e sangue. Algas, professores degolados e um som arrastado à moda dos escafandros que não mais voltarão à superfície.
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“É assim:” (…) “Nesta matéria”, nunca digas “desta fonte não beberei!” “Jamais” (aliás, “jamés”). “Certo?”
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sexta-feira, 4 de abril de 2008
O tempo...
O tempo a domesticar a liberdade com que normalmente aqui venho. Há alturas assim: uma enchente de afazeres e um céu tão azul quanto quase mitológico. Até logo.